por Febraro de Oliveira
Nunca houve, para mim, a ideia de ler em uma sentada. Na realidade, sempre fui bem ruim na finalização das coisas e nem consigo contar os livros que não li a última página. Também com as pessoas sou ruim de finalização, tantos namoros, encontros, amizades duraram um tempo largo, que de uma certa forma era o tempo delas, mas não o meu.
Por exemplo, agora estou em um ônibus e acabo de ler Bola de Pelos, do Matheus Aguiar. Enquanto escrevo esse texto, o corretor automático do meu celular troca a palavra “pelos” do título por “apelo”. Acho um bom ato falho para esse livro tão doloroso. Me tomei por um desejo de início: ler livros que estão de fora da discussão produzida pelos paulistas sobre literatura paulista. Na verdade, meu primeiro pensamento intrusivo foi de chamar de “De fora da foda”, mas pensei que poderia seguir com “Desimaginar”, sou tímido com palavras que podem ser palavrões (embora eu xingue muito bem).
Essa ideia não veio barata, mas pela dor de quem mora longe. E de quem sabe o que significa morar longe. Imagine só: você mora no interior do Pará. Imagine só: você sabe que existe o Pará. Porque as coisas, cidades, espaços, pessoas existem olhando ou não para elas. Escrevo no estado de aliança com Paraguai e Bolívia. Escrevo do Brasil que é Paraguai. E, por isso, moro longe.
Quando li, pela primeira vez, Esperando Godot, estava trabalhando em uma biblioteca de um
grupo de teatro em troca de alimentação e moradia. Foi a primeira vez que consegui pensar no fato das coisas serem longes e estamos ali-aqui, na espera delas. Como diz Matheus em seu livro, e eu juro que estou falando do livro, criamos estratégias para lidar com as coisas, com a longitude delas.
Faz anos que penso em morar em São Paulo, essa kitnet do Brasil que eu amo e que odeio amar (porque as coisas não são uma, são várias). Ficaria mais perto do que quero? E o que quero, tem nome? Endereço, cep, cpf?
Matheus, em certo momento da sua Bola de Pelos, me lembra Duras, em uma tirinha curta dele:
O personagem A diz “te amo”, o personagem B diz “te conheço?”. E o que é o amor se não se desconhecer pelo objeto de desejo? Esse objeto que nem desejo é, mas o reflexo de quem deseja. Se vamos inventando os outros é pelos outros que também somos inventamos — e Matheus sabe. E por saber ele brinca. Ah, sobre a lembrança com Duras. Eu conheci Duras por esse trecho dela: Vens. É preciso achar palavras para dizer sobre o amor. Não há palavras talvez.
Quando Duras escreve sobre o amor, ela escreve sobre a invenção de uma língua para dizer sobre ele. É o que Matheus faz. Bola de Pelos, para mim, diz menos sobre o que fica amontoado, entalado e mais sobre como as perdas sem embolam nas presenças. Toda presença é algo que fica, só existe agora a perda.
Se perco um objeto de desejo e dois anos depois esqueço que perdi, o que perdi foi o objeto ou a lembrança? Um exemplo, temos atrás, uma pessoa (que agora também não me lembro o nome) veio falar comigo e disse que, quando eu trabalhava na biblioteca, fomos apaixonados e que eu havia me apaixonado também, mas que fiz uma circulação com um grupo de teatro e acabei por nunca mais ver ele (eu não tinha celular na época). Eu não fazia ideia da história e de quem era a pessoa, essa que já fui apaixonado — e de fato acredito que posso mesmo ter quase morrido de amor por ela. Mas agora, que não lembro, o que faço? Sou um fantasma dessa memória dele. Ele, agora, da minha.
Um dos meus momentos favoritos do livro é quando Matheus brinca com essa escrita autoetnográfica ou de auto ficção ou alter ficção ou como você quiser chamar, ao falar sobre o mesclado da narrativa do outro com a nossa. Fiquei pensando: quem tem o direito de narrar uma história? Quem mescla ou quem possui? Quando fazia teatro, lembro bem dos diretores falando: uma verdade mal contada vira mentira. É um pouco disso, essa busca de narrar tudo e todos. E Matheus nos chama para conhecer os cantos deles, nesse livro que parece tão pessoal, se não fosse a nossa mesma solidão.
Estou ainda no ônibus, na viagem até Bonito, para um Festival de Cinema Sul Americano que estou produzindo, de uns dias para trás estive lendo Não me pergunte jamais, da Natalia Ginzburg. De uma certa forma, ela e Matheus possuem uma escrita muito próximas: cria-se um tecido narrativo comum para que todas as pessoas entendam o que está sendo dito e, como se não fosse nada, no meio do tecido narrativo comum, jogam uma crueldade ou uma violência cotidiana.
Em Bola de Pelos visualizo não Matheus, não o Pará, não o Mato Grosso do Sul, não o Brasil, não o Paraguai, mas literatura. Deve ser o suficiente para nosso vício contemporâneo de nomear e buscar regionalidades. O livro está a venda com o próprio autor que envia com a dedicatória mais linda que alguém pode receber. Porque Matheus sabe: todas as dedicatórias são de amor.
Para Bola de Pelos, todos os meus finais e o meu amor cruel e, por isso, honesto. Leiam!
Febraro de Oliveira é escritor e performer de Mato Grosso do Sul. Ministrou aulas em diversas instituições, incluindo o maior circuito literário do Brasil, o Arte da Palavra, pelo Sesc em 2024. Venceu o Prêmio Leia MS (2021) e o Prêmio de Reconhecimento Popular (2020) na categoria Livro do Ano. Seu romance de estreia, "Uirapuru," financiado pelo Fundo Municipal de Investimentos Culturais, foi lançado em 2021. Suas construções textuais já foram discutidos e/ou apresentados em diversos lugares como FliSesc, Itaú Cultural, Proler entre outros. Estreou a peça "Cabeça de Toco" no MID - Mostra Internacional de Dança, em Brasília/DF. Publicou, em 2023, o livro de poemas "Caixa d'Água" pela Editora Reformatório, premiado com o Prêmio Caio Fernando Abreu de Literatura (2022). Academicamente, faz mestrado em Estudos de Linguagens, na UFMS. Em sua graduação de Artes Cênicas, foi premiado no Prêmio Inova UEMS (2022).
Contato: Contatofebraro@gmail.com
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