
“Autodestruição inovadora!”
(Anúncio da Mobil Oil, em 1978)
“Tudo que é sólido se desmancha no ar”: comecemos assim, com a escrita postulada por Marx e Engels, em 1848, p. 19, no Manifesto do Partido Comunista. Um tempo depois, em 1982, Marshall Berman pública o livro crítico Tudo que é sólido se desmancha no ar. De lá para cá, cá pra lá, um tanto mudou, se ajeitou, contornou as bordas da realidade, mas, a impressão do sólido, confrontado com a realidade, não se altera. Aquilo que dura, dura pouco. Por vezes, a impressão de uma memória que nos ajuda a construir algo que, pelo ar, se diluiu. Escrevo com a ajuda dessa ferramenta: a memória do sólido sobre a peça Eu Preciso Que Vocês Me Escutem ou EPQVME.
Se tudo é língua e, por vezes, os poetas, escritores, compositores, estendem-se em vícios linguísticos, outras vertentes de uma língua podem, vez ou outra, encontrarem-se repetindo, por vezes sem elaborar, a língua. Um corpo em vício, que complexidade, tende ao próprio abismo, este, que chamamos de corpo. O abismo que é ter um corpo e, neste corpo, um vício para nomearmos com nosso rosto. Possuo diversos vícios, talvez, o mais grave, seja o vício químico em cigarro. Ter consciência de um vício não o faz menos danoso, mas, na busca de abandonar um vício, reconhecê-lo como semelhante faz-se como um verbo de início, um ‘era uma vez’, uma fábula a ser contada. E, por vezes, reconhecemos, no outro, vícios de sua própria linguagem. É assim comigo. Pelos vícios, entramos em “Eu Preciso Que Vocês Me Escutem”, monólogo de estreia de André Tristão. Assisti o espetáculo na estreia, no Armazém Cultural.

“É terrível pensar que nossa vida é um conto sem trama ou herói, feita de vidro e desolação, do murmúrio febril de digressões constantes, do delírio da febre.”
(Mandelstam, O Selo Egípcio, em 1928)
Ao entrarmos na sala de espetáculo, a fumaça predomina, nos confundindo um do outro, nos fazendo ser parte de tudo. Logo no começo, entendemos que não há cadeiras, isso, sobretudo, é um risco para a plateia: entendemos que seremos parte de algo. Essa coisa, a qual seremos parte, nos necessita uma fisicalidade maior do que antes. Prevê um estado de liberdade, podemos andar, circular no espaço. Somos altamente livres e, não há como, dando a liberdade, retirá-la depois. Isso deveria ser um risco para o ator em cena, aqui, o mesmo não acontece.
Ao longe, vemos André por meio de um canhão. Nele, as sombras das pessoas atingidas pela luz. As pessoas, ao não saírem da luz, o deixam metade na penumbra, metade a mostra. Não há, também, como pedir para as pessoas saírem de seus lugares, andarem um pouco. O problema da liberdade. O ator emite um som e caminhamos em direção dele. Ali, ele legenda seus gestos, atos e ações. Ficamos ouvindo e vendo a mesma coisa, caso estejamos perdendo algo. Essa ação, esse jogo de metalinguagem, já tão explorado no teatro e na dança contemporânea, agora se repete. Não há nada novo nisso, mas, também, já abandonamos a ideia de encontrar algo “novo” ou “original”, tudo desmanchado no ar.

“O que está acontecendo, hoje, com o teatro? Essa pergunta pode ser melhor respondida se tomarmos como ponto de referência o palco, e não o drama. O que está acontecendo é, simplesmente, o desaparecimento da orquestra. O abismo que separa os atores do público, como os mortos são separados dos vivos, o abismo que, quando silencioso, no drama, provoca emoções sublimes e, quando sonoro, na ópera, provoca o êxtase, esse abismo que de todos os elementos do palco conserva mais indelevelmente os vestígios de sua origem sagrada perdeu sua função. O palco ainda ocupa na sala uma posição elevada, mas não é mais uma elevação a partir de profundidades insondáveis: ele transformou-se em tribuna.”
(Benjamin, O Que É O Teatro Épico? Um estudo sobre Brecht, em 1931)
O que está acontecendo, hoje, com o teatro? Durante os minutos que passam o espetáculo, somos colocados nessa indecisão. ‘O que configura o teatro contemporâneo?’ se tornará uma questão entre os teóricos que não buscam anteceder o passado. A minha torcida, em particular, é por um teatro contemporâneo que não me ensine a viver e, sobretudo, que não me ensine quem é essa outra pessoa que vive comigo diariamente (o vizinho, o porteiro, o atendente, o namoradinho, etc). Sobretudo busco um teatro que me faça desaprender o que sei, que me tensione e que me esvazie um pouco, que me faça desaprender as condutas, regras e normas sociais. Que me posicione rente à um problema e que, ao se deparar com ele, não busque solucioná-lo, mas que dance com o mesmo. O que busco, nesse sentido, é a crueldade de um espectador: eu busco uma nova vida que nunca terei e que, consequentemente, torço para que alguém a tenha, assim, desse modo, consigo continuar querendo algo. Ao teatro, minha torcida é pela ilusão, não pela realidade. Entretanto, com André, somos colocados frente a frente com a realidade, em pé, em sentido de ação, em exigência que façamos algo: não faremos.

“Alguém conta um minuto pra mim?”, pede o ator correndo no mesmo lugar. Passam 45 segundos, alguém fala “um minuto”, ao que responde “será?”, passam 15 segundos, inicia uma música. Sabemos, é certo, que passou o um minuto, agora. Quem, dessa forma, traiu quem? A plateia traiu o ator, ao lhe dar mais tempo? O ator trai a plateia ao não crer em seu tempo? Qual o tempo que vale na cena? O tempo do ator ou da plateia? Quem dita o tempo? O sonoplasta? Qual o ato punitivo em dar liberdade e retirá-la? Em qual lugar o ator nos tira e coloca, repetidamente? Como em um mito de narciso, o ator fala consigo em uma projeção. “Não saio daqui enquanto não fizer sentido”, ele nos diz. Penso baixinho: o teatro é uma traição coletiva.
Após, uma voz em off, nos explica sobre a criação e formação do teatro, lugar mitos, ritos, sacrifícios, etc. Aqui, somos ensinados sobre o teatro. É um traço contemporâneo, me parece, a ideia de falar sobre o teatro no teatro, a arte no teatro, a literatura no teatro – vimos, é óbvio, isso sendo explorado em outros lugares clássicos, modernos, entre tantos que não conseguimos esquecer: Shakespeare, Molière, Pirandello etc., o que digo é: me parece, cada vez mais difícil, assistir uma peça de teatro contemporâneo sem que ela aborde si mesma, suas configurações, seus sensos comuns, suas idiossincrasias –. Em um trecho, é dito “uma verdadeira peça de teatro perturba os sentidos, libera o inconsciente, leva uma revolta”. Sobre Narciso, ainda, na literatura, possuímos 04 registros do mesmo, as duas primeiras, no século I, de Ovídio (a mais conhecida) e Cânon, após, Pausânias, no século II, realiza as nossas duas recentes versões, que será a que trabalharemos aqui, juntos.
O mito de Narciso, conforme relatado por Pausânias, é composto por duas versões. Na primeira, é mencionado brevemente que existe um local chamado Donakon, na terra dos tespieses, onde se encontra a fonte de Narkissos. Nessa fonte, um jovem se enamorou de si mesmo ao olhar para a sua própria imagem refletida na água e acabou morrendo de amor. Pausânias considera essa versão perfeitamente idiota, já que é difícil imaginar que alguém não seja capaz de distinguir a sua própria imagem da de outra pessoa. Na segunda versão, menos conhecida, Narciso é descrito como tendo uma irmã gêmea muito parecida com ele, da qual se enamorou e que acabou morrendo. Após a morte dela, Narciso ia à fonte para contemplar sua imagem, encontrando consolo ao imaginar que estava vendo a aparência de sua irmã. Pausânias também comenta sobre a origem da flor de narciso, que para ele é anterior ao mito de Narciso e está relacionada ao rapto de Perséfone enquanto colhia narcisos, de acordo com um poema de Pamphos.
Voltemos, então, à “uma verdadeira peça de teatro”.

Como no começo da nossa conversa sobre o espetáculo, trabalhamos a ideia de alterar o destino da coisa, entendendo sua presença (sem ser essencialista). Arseny Alexandrovich Tarkovsky (ou Арсений Александрович Тарковский, como você preferir chama-lo) foi um poeta e tradutor russo, nos ajudará a finalizar nossa conversa-ensaio. Dentre seus poemas, escreveu:
Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
No sol está quente.
Mas tem de haver mais.
Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.
Nada de mau se perdeu,
Nada de bom foi em vão,
Uma luz clara ilumina tudo,
Mas tem de haver mais.
A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.
Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido,
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.
Ao que essa esperança nos fagulha, acredito, que o espetáculo faz bem para Campo Grande, provoca a cidade em um lugar pouco explorado, complexo, denso, por vezes temos de fazer concessões. O que gostaria, entretanto, é uma troca de concessão. André brilha em cena com o nível técnico, apurado, nada sai do lugar. Um ator que está o tempo todo atento aos detalhes, as minúcias e ao corpo. Caso possível, o suor escorreria pelos mesmos lugares, os pés andariam da mesma forma, os olhares, tudo se repetiria. O que quebra a técnica minuciosa é que o espetáculo propõe-se repetir em outros lugares, como aconteceu recentemente no Sesc Cultura.
Fico com saudades de assistir atores com um primor técnico, com uma produção de arte excelente, como vemos no espetáculo. Entretanto, se puder, pediria uma desesperança maior, que procuremos a luz e escuridão, para que a mesma não nos seja entregue e a perdemos, para que o ator aprece, também, sua sombra, que ele se perca um pouquinho. Isso é quase uma reza, percebe? Daqui, temos a previsão de um ator seguro. Tem de haver mais: mais insegurança, menos controle – nosso e dele. Um véu, uma ilusão.
Sobretudo, te pediria para assistir o espetáculo. Faz bem.
Ficha técnica:
"EU PRECISO QUE VOCÊS ME ESCUTEM"
Direção geral e Intérprete-criador: André Tristão Direção de movimento: Jussara Miller Assistência de direção de movimento: Dora de Andrade Provocação de cena: Lígia Prieto Textos: Ewerton Goulart, Raquel Naveira e Giordano Castro Audiovisual e design gráfico: Helton Pérez/Vaca Azul Produção musical: Julio Queiroz Iluminação: Espedito di Montebranco Preparação vocal: Ewerton Goulart Áudiodescrição: Candida Abes Intérprete de LIBRAS: Cláudio Vasques (Sinalize - Possibilidades Em Acessibilidade) Produção executiva: Marcos Mattos (Arado Cultural) Equipe de produção: Gabriel Brito, Maura Menezes Assessoria de Imprensa: Isabela Ferreira (Reconta)
Redes sociais: Tatyana Salvador (My! Agência digital)
Agradecimentos: Pai Benedito, Ana Tristão, Antonio Dede, Vonei Robson, Laís Dória, Núcleo Fuga!, Teatral Grupo de Risco, Hana Chaves, Paulo Oliveira, ISMAC - Instituto Sul Matogrossense para Cegos Florivaldo Vargas, Marcus Vinicius Perez, Nilce Maciel, Anderson Lima, Luiz Bertazzo, Hana Chaves, Reginaldo Borges, Jackeline Mourão, Larissa Carpintero, Silas Oliveira, Christian Laszlo. Apoio: Cia Dançurbana, Casa de Ensaio, SESC/Fecomércio, UEMS (Curso de Dança) Investimento: FOMTEATRO/FMIC - SECTUR-CG e Prefeitura Municipal de Campo Grande.
Sobre o autor:

Febraro de Oliveira nasceu em Campo Grande em 1998. É escritor, vencedor do Prêmio de Reconhecimento Popular, na categoria Livro do Ano, e do Prêmio Leia MS, na categoria poesia. Publicou recentemente seu romance de estreia, Uirapuru, com apoio do edital Fundo Municipal de Investimentos Culturais — FMIC.
Comments