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DESIMAGINAR | Ensaio | Todo redemoinho começa no estômago

por: Febraro de Oliveira


Febraro de Oliveira, escritor, em um ensaio crítico, discorre sobre o espetáculo “Todo redemoinho começa com um sopro”, da direção de Nill Amaral.


À quem será, em nosso devir: uma previsão de frio, esgotada pelo tempo, estava de jaqueta, ridiculamente, a espera do que será: a ventania tão aguarda por mim, que estava tão protegido. Não veio. Na espera daquilo que não sabemos o que é, vamos ao teatro. Uma tradição de chegar antes, esperar, moer o tempo, torcer para que os atores e atrizes estejam igualmente ansiosos, que nos manipulem, que nos façam acreditar naquilo que deixamos. O teatro é, para mim, sobretudo, a proposição de desimaginar o mundo. Vamos ao teatro com uma esperança de tolos, desejamos, fielmente, que quem está em cena carregue nossa solidão para, em um acidente cartesiano, nos reconhecermos ali. Vez ou outra isso acontece, assim, saímos do espetáculo com as pernas bambas, sem saber muito bem o que fazer, onde fazer, esquecendo o endereço de sua própria casa. O público tende a ser egoísta, mas muito generoso ao sair de casa, atravessar a cidade em sua bicicleta, moto, uber, carro, etc., para ver alguém só sendo.


Em um espaço pequeno — quem diria que sobreviveríamos —, um amontoado de gente, apertada, esperando, com cabeças tampando a visão. De onde estava, não observava o chão, as cenas em plano baixo, nada; os atores existiam do joelho acima. Muito comum na produção contemporânea de Mato Grosso do Sul, carregamos, nos espetáculos, a herança de não termos espaços cênicos ideais para montagens (note, aqui, não falo dos espaços cênicos construídos pelos próprios coletivos locais, como o Teatral Grupo de Risco, o Fulano di Tal, o Grupo Casa, a Cia. Dançurbana, entre outros), essa herança reside em montagens que estão sempre se adaptando ao local, sem que a montagem, em si, possua suas idiossincrasias.

Foto: Vaca Azul

Nas marcações detalhistas, vemos quatro personagens: um homem e uma mulher, que recolhem retalhos, recordações, caixas de uma terceira personagem, uma mulher que morreu. Os dois personagens iniciais são contratados pela filha dessa mulher, sem nome, em uma praticidade que só o luto pode nos dar, personagem que nos aparece virtualmente em uma projeção bem instalada em caixas de papelão.


Os cortes da projeção, esfumaçando-se, dissipa a marcação da mesma. Parodiando o teatro ao cinema, que ninguém se engane: é teatro. Os cortes da câmera, na aproximação ao rosto da atriz, em uma atuação simples, elegante e precisa, na projeção, me afastam um pouco do lugar teatral, manteria o plano inicial, que provoca uma beleza estranha, no instante que infiltra outros traços estilísticos do teatro de Nill Amaral. Ando gostando da pervasão que o movimento contemporâneo tem, onde tudo dissipa e não há pureza na criação.


Foto: Vaca Azul

Ao que se assemelha na produção dramatúrgica contemporânea, temos três personagens que se perseguem em uma monocromia, sem muita separação entre eles na dramaturgia. Nisso, a construção de personagem nos move apenas pelos dizeres influenciados por Clarice, como se eles não existissem em singularidade. O texto dito pela mulher que arruma as caixas também poderia ser dito pelo homem que arruma as caixas. Talvez, seja uma sorte da vida: quantas vezes nos deparamos com alguém que nos assemelha tanto que, talvez, por uma espécie de lembrança de si, a tornamos alguém importante em nossa vida? Isso, talvez, tenha acontecido entre esses dois personagens, mas não saberemos. O que temos na dramaturgia são dois personagens que se parecem muito e que, por vezes, confundem-se com a terceira.


Entre o ofício de esvair-se de vaidade, os atores se colocam em cena disponíveis ao acaso do público em relação ao texto. Vejo a atuação como o ofício do inorgânico, assim, na repetição, uma espécie de esquecimento ocorre no corpo, o gesto começa a só ser, sem uma imposição — repetir, repetir e repetir. Com sorte, não saber por onde começar. Ao colocar-se em cena, todos estão em risco, tanto o trabalhador do teatro, o da iluminação, música, o diretor até a plateia. Não há segurança nenhuma que o que foi exibido ontem seja exibido hoje: nunca saberemos quem, ao atravessar a rua de uma cena, pode mudar nossa vida. Estamos na contramão da indústria de cultura, buscamos uma espécie de lento enérgico, longe do consumível em segundos que esqueceremos no outro dia.


Foto: Vaca Azul

Em cena, algumas vezes, há o costume de jogar o timbre para baixo, na busca de uma espécie de profundidade, isso acompanha a construção dos atores na peça que, por momentos, descem a fala. Não sei se isso é necessário quando o texto percorre tantas profundidades, uma das cenas, para mim, mais profundas e com uma espécie de beleza está quando os dois personagens acham um cigarro e fumam. A cena tão divertida, em simultâneo, tão profunda, realiza uma construção de personagem cruzada, um recurso literário complexo, sendo o momento em que mais sabemos quem eles são, pois, estão distraídos, na miudeza da vida, sem querer ser, só sendo, sem buscar uma frase que nos revele ou que os revele, não há nada disso nessa cena, uma simplicidade rara de se observar no teatro, encantadora, que nos conquista sem notarmos.


A direção é minuciosa, elegante, juntando-se com a iluminação e o cru de uma estrutura sendo vista. Vemos o teatro no teatro, não há nada que nos esconda ou proteja em um imaginário. Sabemos, o tempo todo, que estamos no teatro, nas bordas da vida, como disse Pirandello. Vemos uma preocupação em manter uma coerência estética, modulando a língua e a linguagem.


Foto: Vaca Azul

Com poucas virtuoses, a peça se modula no texto-cêntrico — algo característico do teatro campo-grandense —, tendo poucos silêncios, nos momentos em que há, o espectador tem uma capacidade e chande de inferência. No decorrer da vida, temos crueldades, como a do peixe sendo furado, ficando sem água, com a chance de não o ser. A mulher que mata os peixes, aqui, é rápida, nos deixa sofrer pouco, logo nós, que já entregamos tudo a ela e, nesse momento, buscamos o sofrimento, a crueldade de alguém e a nossa passividade em solucionar o mesmo. Nisso, não sei se a projeção dos peixes se faz como uma legenda da cena, tenho dúvidas da mesma.


Clarice Lispector,

a senhora não devia

ter-se esquecido

de dar de comer aos peixes

andar entretida

a escrever um texto

não é desculpa

entre um peixe vivo

e um texto

escolhe-se sempre o peixe

vão-se os textos

fiquem os peixes

como disse Santo António

nos textos


(Adília Lopes, em Clube da poetisa morta, via

Relógio D´água, em 2004)



Nisso, a cena final, com a atriz despejando papel e sonho na gente, nos faz esquecer tudo. O registro de quem somos se dissipa nos papéis azulados, ficaríamos uma vida ali, vendo, sendo. Uma travessia, o desimaginar do teatro. A vontade de voltar no dia seguinte, assistir novamente à peça — repetir, repetir e repetir. Com sorte, perder-se novamente. Enebriados e febris, estamos bambos. Precisamos sair, olhar à rua, tentar encontrar o que perdeu. Não é uma troca, é um compartilhamento generoso de solidões. Uma peça para ver e rever, que costura e nos constrói.


Neste espaço crítico, coloco as minhas, somente minhas, impressões na apreciação do mesmo. Não coloco nada como certeza ou julgamento final, apenas percepções daquilo que vi, esperando um diálogo sobre a produção em arte no Mato Grosso do Sul.


Sobre o autor:

Febraro de Oliveira nasceu em Campo Grande em 1998. É escritor, vencedor do Prêmio de Reconhecimento Popular, na categoria Livro do Ano, e do Prêmio Leia MS, na categoria poesia. Publicou recentemente seu romance de estreia, Uirapuru, com apoio do edital Fundo Municipal de Investimentos Culturais — FMIC.

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2 comentários

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2 Comments


Guest
Jun 21, 2022

Amei essa matéria

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Guest
Jun 21, 2022

Parabéns.Muito interessante,

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